Tantas literacias já fazem parte do currículo obrigatório de um cidadão responsável: literacia em saúde, literacia financeira, literacia digital... E a literacia física? Essa não faz parte do currículo. Continua a ser tratada como uma consequência natural do crescimento, da infância, da “vida ativa”. Mas não é.
Ninguém nasce a saber mexer-se
A literacia física não é automática, nem universal. Não vem de nascer com “jeito para o desporto”. Vem de ter tido oportunidades para explorar, aprender e sentir o corpo em ação — com intenção, com segurança, com espaço para errar e repetir. E isso nem sempre acontece. Podemos discutir as razões para o aumento da inatividade e do sedentarismo entre crianças e adultos — redes sociais, telemóveis, estilo de vida, mas o facto permanece: a maioria de nós não viveu experiências de movimento suficientes durante o crescimento, nem teve oportunidade de recuperá-las mais tarde.
Reduzir a literacia física à educação física escolar é parte do problema. Sobretudo quando essa educação é limitada (a educação física no primeiro ciclo continua a não ser obrigatória!), irregular ou mal compreendida. O que se aprende — ou não se aprende — na infância e na adolescência em relação ao corpo e ao movimento tem consequências reais. Influencia não só se nos mexemos, mas como o fazemos. Como respondemos à dor. Como prevenimos lesões. Como lidamos com o desconforto. Como confiamos no corpo para agir. Como ensinamos os nossos filhos.
Reduzir a literacia física à educação física escolar é parte do problema. Sobretudo quando essa educação é limitada (a educação física no primeiro ciclo continua a não ser obrigatória!), irregular ou mal compreendida. O que se aprende — ou não se aprende — na infância e na adolescência em relação ao corpo e ao movimento tem consequências reais. Influencia não só se nos mexemos, mas como o fazemos. Como respondemos à dor. Como prevenimos lesões. Como lidamos com o desconforto. Como confiamos no corpo para agir. Como ensinamos os nossos filhos.
É "só" fazer mais exercício
A ausência de literacia física não é neutra. Tem custos. Não só pessoais, mas sociais, económicos e culturais. Um corpo iletrado é como cozinhar sem saber ler a receita — podes ter os ingredientes certos, mas sem saber as quantidades ou a ordem, vais acabar por errar várias vezes até chegar a um resultado satisfatório. É o caso de quem inicia corridas com tanto entusiasmo que acaba por se lesionar por sobrecarga. Ou de quem procura colchão e cadeira mais "ergonómicos" possível, porque acredita em posições perfeitas como solução para o desconforto. Ou de quem tenta corrigir a postura com base num vídeo viral, sem perceber que o que parece “alinhado” num corpo, é "torto" noutro.
E quando se fala de “promoção da saúde”, repete-se a receita: ser mais ativo, fazer mais exercício, evitar o sedentarismo. Mas como é que se pede a alguém que se mova mais se nunca teve oportunidade de construir relação com o próprio corpo? Se não tem vocabulário motor? Se sente vergonha? Se a experiência anterior com o movimento foi de exclusão, dor ou frustração? Há tanta gente quem só comece a fazer atividade física quando o médico diz que é uma questão de vida ou de morte. Mas será mesmo preciso chegar a esse ponto? Se soubéssemos cultivar literacia física ao longo da vida talvez o movimento não chegasse como imposição tardia.
E quando se fala de “promoção da saúde”, repete-se a receita: ser mais ativo, fazer mais exercício, evitar o sedentarismo. Mas como é que se pede a alguém que se mova mais se nunca teve oportunidade de construir relação com o próprio corpo? Se não tem vocabulário motor? Se sente vergonha? Se a experiência anterior com o movimento foi de exclusão, dor ou frustração? Há tanta gente quem só comece a fazer atividade física quando o médico diz que é uma questão de vida ou de morte. Mas será mesmo preciso chegar a esse ponto? Se soubéssemos cultivar literacia física ao longo da vida talvez o movimento não chegasse como imposição tardia.
O corpo tem de caber na política
A literacia física não é um acessório — é infraestrutura. É aquilo que permite que o corpo tenha agência no mundo. Uma base de competências físicas, emocionais, sociais e cognitivas que permite ao corpo existir de forma ativa, autónoma e significativa. O desafio é coletivo: precisamos de ambientes escolares, comunitários, e familiares onde o corpo seja reconhecido como sujeito. Onde o movimento seja explorado, valorizado e compreendido. E onde se entenda que literacia física não é uma competência para atletas, mas um direito para todos.
Se queremos cuidar da saúde pública de forma estrutural, a literacia física tem de sair da margem. E ocupar o lugar que lhe pertence: no centro das políticas, das práticas e das conversas sobre o que significa viver bem num corpo que se mexe.
Se queremos cuidar da saúde pública de forma estrutural, a literacia física tem de sair da margem. E ocupar o lugar que lhe pertence: no centro das políticas, das práticas e das conversas sobre o que significa viver bem num corpo que se mexe.